Temas E Características Do Cinema De Brian De Palma
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(esse texto foi escrito no início dos anos 2000 e por isso certas percepções mudaram e o cinema de De Palma é muito mais reconhecido hoje em dia, principalmente por causa da internet que na época do texto ainda não era como ficou hoje em dia)
- Introdução:
A obra do cineasta Brian De Palma é singular por apresentar uma carreira marcada por várias acusações de plágios de outras obras cinematográficas, sendo mais frequente as comparações com Alfred Hitchcock, sem esquecer que por várias épocas de sua vida profissional poderemos achar comparações sendo feitas com filmes de Jean-Luc Godard, Michelangelo Antonioni e Stanley Kubrick.
Raros os cineastas atuais que foram e são atacados com tamanha persistência; em razão disso, De Palma nunca foi devidamente analisado, seus filmes não foram observados mais atentamente, sendo logo rejeitados e esquecidos; consequentemente sua obra nunca figurou como referência, seu nome nunca esteve ao lado de outros do chamado alto escalão cinematográfico e sua reputação nunca passou de um mero copiador.
Tendo como base seus filmes, marcadamente pessoais, é intuito desse trabalho reconsiderar o valor de sua obra e colocá-lo devidamente numa posição acima a de um comum diretor de filmes, mas a de um autor, um artista que se expressa através de sua arte — os filmes — para uma audiência mundial.
Ao caracterizar temas comuns, características próprias, técnicas complexas e personagens intercambiáveis de filme para filme o trabalho apresentará motivos claros e orgânicos que não deixarão dúvida quanto o perfil de um autor que se traça diante de Brian De Palma.
Pretende-se identificar em toda a obra do cineasta as qualidades mais importantes, concentrando o estudo nos filmes mais significativos, evitando assim uma possível extensão desnecessária no formato proposto.
O estudo se mostra relevante devido a escassa literatura nacional disponível sobre seus filmes. Na parte internacional é comum encontrar vários livros fora de estoque.
Também deve-se salientar o que este estudo, devido ao grande número de características que podem ser exploradas, não vai tratar ou vai evitar a medida do possível:
- a misoginia do diretor em suas obras;
- os filmes que não puderam ser vistos e revistos e também os que abordam temas mais ligados ao fantástico (“Carrie”, “A Fúria” e “O Fantasma Do Paraíso”), devido primeiro a não ter a disposição o material a ser estudado e segundo pelos filmes citados estarem num outro nível de apreciação, sendo prejudicial para esse estudo as suas inclusões;
- a argumentação em torno das comparações com o cineasta Alfred Hitchcock serão levemente abordadas. O tema em particular merece um estudo próprio e mais profundo;
- a parceria com o compositor Bernard Herrmann e outros. A utilização da música como elemento explicativo;
- um olhar mais apurado com relação ao voyeurismo, que será devidamente tratado, mas não exaltado e argumentado.
2. Reconhecimento:
Apenas com o surgimento de uma nova geração de espectadores e críticos, principalmente franceses, no mundo inteiro que demonstraram um interesse inesperado nos filmes de Brian De Palma (tanto os novos quanto os antigos trabalhos) é que sua obra está começando a ser descoberta e valorizada.
Isso é claramente notável em um meio relativamente novo para que possamos nos alongar além do que podemos: a internet. Nem podemos prever o que pode surgir desse novo aparato de comunicação e divulgação, o que podemos fazer aqui é relatar.
Como a internet tem como princípio a livre divulgação de ideias e que para isso uma pessoa há de idealizar e construir um sítio virtual com sua própria vontade e com seus próprios interesses é relevante mostrar um crescente número destes sítios dedicados à obra do cineasta. O que os diferenciam e os destacam da grande maioria é a enorme disposição para a divulgação de análises, debates, dissertações e história que os filmes permitem.
Sendo esses sítios virtuais grandes fontes para o estudo do cineasta, no decorrer desse trabalho referências e citações pontuarão o texto.
O próprio De Palma fez comentários sobre os sítios virtuais dedicados à sua obra:
“Eu realmente acredito que nossas vidas continuarão na rede mundial de computadores. E não somente em sítios virtuais de fãs. Você sabe, não são fãs no sentido de um cara maluco correndo atrás de você querendo pegar um autógrafo. Digo, estas são pessoas inteligentes. E isso o que você encontra indo nesses sítios virtuais, e você percebe que não são um bando de idiotas. Alguns desses ensaios que eles escrevem nesses fóruns, são como… Uau. Digo, esses caras realmente estão pensando sobre o assunto. Isto o que você também encontra nos críticos franceses. Digo, estes caras… por isso é interessante conversar com eles. Porque eles realmente te estudaram. Seus ‘insights’ no que você realizou te fazem refletir. E isto é uma coisa que você nunca vai encontrar na imprensa podre dos Estados Unidos.”[1]
Dito isso é evidente uma nova geração de cinéfilos e estudiosos que estão se dedicando a aprofundar os estudos na obra do cineasta.
Assim como esses novos fóruns e sítios virtuais, livros em elaboração e artigos em revistas especializadas mais um aspecto positivo nesse crescente entusiasmo com a obra de Brian De Palma foram os recentes relançamentos de alguns filmes de sua carreira, “Scarface” e “Carrie” e uma trilogia “Trágica Obsessão”, “Vestida Para Matar” e “Um Tiro Na Noite” nos cinemas franceses, incluindo novos cartazes e um pequeno livro de apresentação.
Em Setembro de 2000 será lançado um dos mais importantes livros sobre a carreira e a vida de Brian De Palma, De Palma On De Palma, escrito por dois críticos franceses da revista Positif. Num estilo similar ao famoso Truffaut/Hitchcock o livro levou sete anos para ser concluído em muitas entrevistas com o próprio De Palma.
3. Biografia:
Nascido em Newark, Nova Jersey no ano de 1940, De Palma é o caçula de três irmãos de uma família católica, o pai cirurgião ortopedista e a mãe uma frustrada cantora de ópera.
Com pouca idade se interessa pelo cinema, filmando com uma câmera super 8 algumas cirurgias do pai.
Um episódio ocorrido durante a adolescência é significativo: o jovem De Palma, influenciado pela mãe, tenta obter provas concretas do pai tendo um caso com a enfermeira. Uma noite, vestido todo de preto e portando uma faca, ele vai ao consultório do pai. Não conseguindo abrir a porta com a chave ele quebra uma vidraça e entra gritando, já com a mão sangrando. A enfermeira não estava lá, sendo apenas encontrada no quarto andar. Logo após Brian deu meia volta e saiu apenas se despedindo do pai dizendo “Nos vemos no tribunal”. Nunca mais os pais morariam juntos e o divórcio mesmo só foi oficializado anos depois.
Estudando teatro na Universidade da Columbia se volta para a realização de um curta metragem, Icarus, seguido por outros com premiações que o encorajam a seguir uma carreira dentro da área.
Realiza seu primeiro longa metragem ainda quando era estudante da universidade Sarah Lawrence em 1963. “Festa De Casamento” contava com a presença de um iniciante ator chamado Robert De Niro. Essa habilidade de descobrir novos talentos foi mais reconhecida com o tempo ao dar as primeiras oportunidades para atores como John Lithgow, Michelle Pfeiffer, Kevin Costner e Melanie Griffith.
Com o espírito da época realiza filmes de baixo orçamento com experiências vindo do teatro de rua, “Saudações” e “Hi, Mom!”. Com o relativo sucesso dessas películas a Warner Bros. oferece a chance de um contrato para realizar “O Homem De Duas Vidas” que tem no elenco Orson Welles.
As filmagens foram complicadas, principalmente com o ator principal, Tommy Smothers, famoso na época, que não gostava das idéias de De Palma. O diretor é despedido ao final do seu primeiro filme de estúdio. Arrasado ele volta para Nova York e muda o estilo de seus filmes, passando a exercitar as influências que sofreu dos filmes de Alfred Hitchcock, um de seus diretores favoritos. Seus próximos filmes seriam “Irmãs Diabólicas”, “O Fantasma Do Paraíso” e “Trágica Obsessão”.
Conflitos internos surgem em seus propósitos. Ao mesmo tempo que gostaria de ser reconhecido como artista ele queria alcançar sucessos de bilheteria. Mas, seus filmes mais pessoais não seduziam a grande massa. Quando seguia seus instintos pessoais a reação mais comum era a de repulsa e os filmes eram encarados como ofensivos.
Comparado-o com seus companheiros de geração seus filmes apesar de alguns serem sucessos não chegavam ao sucesso de Steven Spielberg na época com “Tubarão” e “Contatos Imediatos De Terceiro Grau”, Francis Ford Coppola com “O Poderoso Chefão” e George Lucas com “Guerra Nas Estrelas”.
Umas das primeiras lições aprendidas em Hollywood era a bizarra noção que uma pessoa era julgada de acordo com a bilheteria de seu último filme. Decepcionado pelo lado da indústria em Hollywood, mas também insatisfeito com suas produções independentes em Nova York, De Palma se encontrava aprisionado em comparações com Hitchcock vindas com o lançamento de “Dublê De Corpo” e os fracassos de filmes como “Um Tiro Na Noite”.
Após ter se dedicado meses a fio na elaboração de “O Príncipe Da Cidade” ele é tirado do projeto e substituído por Sidney Lumet. A reação foi na forma da história de um mafioso cubano, Tony Montana, no filme “Scarface”, uma refilmagem de um antigo filme de Howard Hawks. Trabalhando com um estúdio forte, a Universal, e um astro como Al Pacino, e tendo a chance de se mostrar respeitável dentro da indústria, De Palma mais uma vez desafia o sistema e abusa de todas as formas, filmando seqüências brutais que enlouqueceriam os censores da MPAA (Motion Picture Association Of America), com os quais já tinha tido atritos com “Vestida Para Matar” e filmes anteriores. O filme o transforma em uma personalidade marginal dentro da indústria, a associação direta com violência e pornografia ele ajudaria a aumentar com o próximo filme, “Dublê De Corpo”.
Cansado de todos os ataques ele para por dois anos e ressurge com uma modesta comédia mafiosa, “Quem Tudo Quer Tudo Perde”, que não chama muita atenção. Nesse período de transição é chamado para adaptar para o cinema a famosa série de tv “Os Intocáveis”. O filme se transforma no seu maior sucesso financeiro e crítico. Antigos admiradores de seu trabalho notam que a complexidade psicológica e o humor sarcástico não apareciam na tela, mas essas ausências possibilitaram uma ampliação de seu trabalho para maiores audiências. Esse sucesso trouxe confiança para que um projeto antigo e pessoal pudesse ser desenvolvido, “Pecados Da Guerra”.
Esse relato (real) da guerra seria a possibilidade de realizar um grande filme de temática séria e com esplêndido visual. E também uma forma de homenagear um dos seus filmes favoritos, “A Ponte Do Rio Kwai” de David Lean.
De Palma tinha consciência que a temática muito pesada e sombria do filme não seria um chamariz de público como “Os Intocáveis”, mas não queria passar a pensar no sistema de valores que a indústria imprima na maioria dos diretores. Ao mesmo tempo, sabia que a realização desse projeto só fora possível graças ao sucesso anterior. Conforme as filmagens iam se encaminhando para o fim a perspectiva de um grande fracasso deixou De Palma fisicamente doente.
Para evitar entrar em pânico na expectativa da estréia do filme ele começou a planejar o próximo filme, um roteiro baseado no famoso livro “A Fogueira Das Vaidades”.
A estreia de “Pecados Da Guerra” confirmou todas as más impressões anteriores: o filme era um fracasso comercial e a crítica também não recebeu muito bem a película.
Abalado, De Palma se refugia e some do mapa. Alguns amigos mais próximos o resgatam do isolamento, como Steven Spielberg.
Recomposto, o cineasta encara a controversa adaptação literária. Uma vez mais o filme fracassa mesmo contando com astros como Tom Hanks e Bruce Willis. Uma das causas foi a impossibilidade de vender bem a idéia do filme para o público que não entendeu se estava vendo uma comédia, uma sátira ou um drama.
O próprio Spielberg faz um comentário sobre o amigo, “ele é um sobrevivente”. Em 1992 o cineasta realiza uma volta ao gênero mais identificado com sua pessoa, o suspense, com “Síndrome De Caim”. A mistura de um alto humor negro, com uma trama complicada afasta o público dos cinemas.
Mesmo assim “O Pagamento Final” é feito dois anos depois e se sai bem nas bilheterias. O filme mais tarde será exaltado e votado como um dos melhores da década em várias listas de críticos pelo mundo a fora, principalmente após a Cahiers Du Cinema publicar sua lista e revalorizá-lo.
É dado a ele, então, mais uma adaptação de uma série de tv, “Missão Impossível”, desta vez por força do produtor do filme, o astro Tom Cruise. Mesmo com reportadas discussões entre os dois durante a filmagem o filme estreia e vira um grande sucesso comercial.
“Olhos De Serpente” segue carreira dois anos depois trazendo um longo plano sequência bem elogiado por todos.
Em 2000 De Palma arrisca filmar em um gênero nunca antes experimentado, a ficção científica. “Missão Marte” é bem recebido pelo público apesar da crítica trocar as comparações com Hitchcock por Stanley Kubrick desta vez.
Apesar de tudo, em todos os filmes sejam mais comerciais ou mais pessoais, a marca de Brian De Palma sempre é vista claramente tanto na técnica, quanto no enredo e nas temáticas abordadas.
Para o futuro encontra-se um cineasta indeciso sobre o caminho a seguir. Talvez uma mudança e a realização de filmes pessoais de baixo orçamento ou continuar nos Estados Unidos e assumir a cinebiografia de Howard Hughes, outro projeto pessoal antigo.
Essa constante crise que o vem atormentando durante toda sua carreira: a de querer respeito como autor e ao mesmo tempo sucesso comercial talvez esteja longe de ser amenizada, mas talvez seja essa crise fonte de sua constante força visual.
4. Temas:
Num primeiro momento todo espectador que se inteirar dos filmes realizados por Brian De Palma perceberá imediatamente duas características — violência e virtuosismo — e dois temas — dualidade e morte.
A violência se apresenta sempre chocante. Violência essa que num primeiro instante causa repulsa e cria um elo ao tema da morte. No cinema de De Palma a morte se apresenta como a única coisa de força aos personagens, a única certeza possível e sem contestação. Em contraste com a vida, onde seus personagens vagueiam procurando sentido, significado e razões morais e éticas para atitudes e posições. O ato violento como reafirmação da realidade, sendo este outro assunto de sua obra: a natureza da realidade. Onde fica o real? Pelo que se vê, ouve, presencia, observa? Qual a marca que traz de volta o senso de real? Procura-se fotos, vídeos, meios materiais para atestar a própria materialidade da realidade. O sonho, a ilusão e o delírio despertam de seus estados pelo ato violento de uma faca, uma navalha, uma serra elétrica, uma broca, uma corda, um tiro.
Os mundos se mesclam entre a objetividade e a subjetividade. Estados emocionais e morais se transformam em realidades metafísicas e são elementos de exploração na natureza da percepção e um embaçamento na dicotomia entre objeto e sujeito.
Por vezes a subjetividade do espectador é a mesma do protagonista, o objeto visto passa a ser desejado sem ser possuído ou quando, nas circunstâncias adequadas, é possuído ocorre a inversão das posições e somos nós, espectadores, os observadores sem a possibilidade da posse, da satisfação do desejo, não há a transferência de posse como normalmente o cinema clássico narrativo utiliza para seduzir a plateia; viramos uma vez mais espectadores em sua mais básica função de apenas ver, apenas instigados a presenciar todos os ângulos, toda a duração da sedução. A transferência apenas existe na impotência do protagonista, na incapacidade da ação, na ineficiência física ou moral. Ao espectador é jogado apenas a culpa, a falha. Referências a um certo sadismo na sua filmografia sempre foram apontadas por detratores.
Na opinião da jornalista Julie Salamon que acompanhou em detalhes os bastidores de “A Fogueira Das Vaidades” e publicou um livro relatando essas experiências, “The Devil’s Candy”, os filmes do cineasta: “gravitam no gênero suspense como uma maneira de contar histórias violentas de amor obsessivo, ansiedade sexual, morte e traição. Seus filmes contêm famílias problemáticas e identidades confusas. Seus filmes são sangrentos e mesmo assim estranhamente poéticos, agitados mas planejados cuidadosamente, cheios de paixão e ao mesmo tempo distantes.”[2]
Outro tema são as sérias consequências morais de uma ação defeituosa, ou uma ação tardia. O que não pôde ser feito tem repercussão na trajetória de um personagem, seja para provocar uma reação durante o filme ou então como uma consequência que se deixa aberta ao final.
Na variedade de sua obra podemos dividir os principais temas em o duplo, morte e não-morte, autor e autoria, real / imaginário.
4.1. O duplo
O tema do duplo é uma constante em grande parte dos filmes do cineasta, sendo em alguns mais e em outros menos explícito, tendo como causa a adequação ao enredo e ao trabalho numa indústria cinematográfica onde nem sempre há a possibilidade de liberdade criativa.
Esse tema se conecta com várias outras obsessões do diretor como o voyeurismo e a dualidade entre o observador e o observado. Também nos remete ao clássico tema do doppelganger.
O termo foi criado pelo escritor Jean Paul Richter no livro “Siebenkas”, escrito no final do século 18. No livro o termo é usado em um ‘par de amigos’ que apenas parecem estar completos quando juntos: quando estão separados parecem ter apenas metade de sua forma e vitalidade. A palavra doppelganger vem do alemão e literalmente quer dizer “duplo andarilho”. O tema do duplo foi bem explorado na literatura da época e Goethe talvez tenha sido o mais famoso a difundir essa ideia em “Fausto”. Não por acaso De Palma utiliza explicitamente em “O Fantasma Do Paraíso” essa ideia, no caso, um músico que vende a alma ao diabo para obter sucesso.
As variantes do doppelganger em casos de dupla personalidade, gêmeos, alter egos e pessoas esquizofrênicas vão ser exploradas em quase toda a obra do cineasta. Se no início as variações são bem evidentes como os usados em “Irmãs Diabólicas”, “Trágica Obsessão” e “O Fantasma Do Paraíso”, com os subsequentes filmes a questão do duplo é cada vez mais colocada nas entrelinhas do enredo. Assim ocorre em “Um Tiro Na Noite”, “Dublê De Corpo”, “Vestida Para Matar”, “Pecados da Guerra”, “A Fogueira Das Vaidades”, “O Pagamento Final”, “Missão Impossível” e “Olhos De Serpente”. Em cada um desses filmes encontraremos indícios do duplo e suas dezenas de combinações possíveis de forma sutil e por vezes imperceptível na primeira visão.
Em “Dublê De Corpo” há além dos duplos, a inversão de papéis. Como apresentado no final do filme um dublê é chamado para ser o corpo da vítima, sendo o papel de um dublê o de preservar a “vida” e reputação do artista principal. Já no crime planejado por Sam (Gregg Henry) a dublê interpretada por Melanie Griffith faz a parte mais segura deixando o papel perigoso para a artista principal, Gloria (Deborah Shelton).
Em “Scarface” o que supostamente seria o simples espelhamento de Tony Montana em seu braço direito (Steven Bauer) e vice-versa, assume outros significados ao acrescentar os personagens femininos da irmã de Montana (Mary Elizabeth Mastrantonio) e também de sua esposa (Michelle Pfeiffer). A incestuosa paixão de Montana pela irmã não se concretiza, sendo redirecionada para a esposa que não corresponde a esses desejos.
O soldado interpretado por Michael J. Fox em “Pecados Da Guerra” recorda de tudo que ocorreu somente ao ver uma garota igual a vietnamita morta e estuprada pelo seu pelotão durante a guerra. Seria ela um fantasma, um espelho, um doppelganger? E a relação dele com o sargento que Sean Penn interpreta é muito mais que a de simples soldados ou inimigos. Ao mesmo tempo que se rebela com atitudes do pelotão e principalmente do sargento encarregado, o soldado tem sua vida pendente com ele, sendo salvo por ele logo no início do filme. O sargento já não é o grande obstáculo, mas sim a sua própria consciência e o fantasma da garota morta que o instiga a tomar decisões.
Peter Fallow, o jornalista que tenta subir na carreira e Sherman McCoy, o milionário de Wall Street que terá sua vida devassada são os dois lados de uma mesma personalidade em “A Fogueira Das Vaidades”. Se no livro não há um encontro físico entre os dois antagonistas, no filme esse encontro ocorre para reforçar o intercâmbio entre os dois. Um depende do outro, seja com objetivo do sucesso ou a consciência moral, para crescerem como personagens.
Somente no filme “Síndrome De Caim” ele volta a explicitar essa questão colocando não apenas dois, mas quatro personalidades diferentes protagonizados pelo mesmo ator. A linha que define a realidade da fantasia nesse enredo é muito mais difícil de ser demarcada.
A própria definição da função do diretor feita por De Palma na revista Sight And Sound é uma evidência desse duplo: “Direção é ficar atrás da câmera e observar o que outras pessoas fazem. Você é uma pessoa com um papel ativo e provocativo e então você é uma pessoa que tem que ter uma presença quieta e sensorial. Há muito de uma divisão de personalidades ali”.
Os personagens de forte ética e questionamento moral são, por assim dizer, ideais para as ambiguidades pretendidas pelo diretor. Ao ter que percorrer um caminho árduo, o indivíduo se desdobra em múltiplas facetas, sejam elas reais ou imaginárias, que se digladiam constantemente na procura por um rígido código de ética. Não há os tradicionais papéis da dramaturgia do “bom” e do “mal”, eles se fundem e se distanciam entre si e dentro da própria psique de cada protagonista. Se há, vez por outra, um corpo físico presente que simbolize toda essa negatividade, corrupção e degradação do estado das coisas é apenas um recurso totalmente cabível para que o diálogo com o espectador seja mais fluente e compreensível.
Não é somente na oposição de personagens que a duplicidade aparece. Nos personagens que conseguem unicamente alcançar a realidade através de outros meios que não sejam os físicos também há a ideia da complementação, do contato com o outro. Esses meios incluem espelhos, onde somente com a imagem refletida há a caracterização da pessoa observada como corpo presente e real, o mesmo ocorrendo com o uso de lentes. Variações disso podem ser constatadas nos personagens principais de “Hi, Mom!”, “Dublê De Corpo”, “O Pagamento Final”. Eles (os protagonistas) conseguem se apaixonar, ou bem dizendo, conseguem afirmar sua paixão somente após o contato visual de longe e de forma oculta. Sendo que em “Hi, Mom!” a relação, em certo momento, só existe se for registrada pela câmera oculta no apartamento do outro lado da rua; o mesmo ocorrendo no primeiro encontro de Craig Wasson e Melanie Griffith em “Dublê De Corpo” nas filmagens de um filme pornô.
A tela que se divide ao meio é apenas mais um exemplo explícito dessa procura pela realidade (verdade / conhecimento). Em “Um Tiro Na Noite” acompanhamos a reportagem sobre as festividades próximas ao mesmo tempo que o protagonista anota sons gravados na fita magnética. Há ali evidentemente toda a futura trama sendo apresentada: o acidente com o governador junto com sons que prenunciam o que acontecerá tocando ao mesmo tempo, como um tiro (quando o governador é focalizado) e a queda de um corpo.
4.2. Morte e não–morte
O conceito de morte e não–morte em De Palma é bem claro em vários momentos de sua carreira. Para defini-lo melhor, Giuseppe Puccio escreveu em seu estudo: “O cinema de De Palma é, tipicamente, um cinema de suspensão. O mundo e a condição humana parecem estar congelados, presos em círculos indefinidos. Não apenas o papel do protagonista é questionado, mas toda sua condição de existência. Nesse sentido, a ambiguidade da realidade se transforma, mais existencialmente, na ambiguidade da própria vida, dúvida sobre a objetividade e integridade da consciência. A morte, o único momento de ‘força’ de uma individualidade ilusória, simboliza e define o significado último do que é experimentado. A condição humana, por contraste, aparece ‘fraca’ e indecisa; não é, num sentido mais profundo, uma vida real, mas no máximo uma ‘não–morte’”.[3]
A crítica Nicole Brenez contextualiza esse tema para o personagem de Carlito Brigante (Al Pacino) em “O Pagamento Final”:
“O fantasma é o maior protótipo no cinema contemporâneo. O cinema, é claro, não inventou esse espectro. Mas nos dias de hoje é povoado por fantasmas que não são sombras de alguma coisa, como alguém morto ou divino, ou de algo misterioso de outro lugar. São fantasmas deles mesmos e para eles mesmos. A aparição de tais criaturas desafia a distinção entre vida e morte. Eles perpetuamente mudam suas peles conforme vagueiam pelo mundo, permitindo as mais extraordinárias extravagâncias narrativas: Cosmo Vitelli em “A Morte Do Bookmaker Chinês” (John Cassavetes, 1978), Clint Eastwood como o “Cavaleiro Solitário” (1985) ou William Munny em “Os Imperdoáveis” (1992), o protagonista de “Dead Man” (Jim Jarmusch, 1996) e até Ace Rothstein em “Cassino” (Martin Scorsese, 1996), conduzidos pela falta de amor… Eles vêm como almas perturbadas, incapazes de alcançar nem a existência ou o desaparecimento, perseguidos por um destino profano com o qual resistem com toda suas deficientes forças. Hoje, o cinema produz todas essas figuras en masse, mas não são de todo negativas ou defeituosas; muito pelo contrário. Algumas delas são as figuras mais fortes de afirmação que o cinema já produziu, porque elas revertem a luta deste mundo para o outro em uma luta de outro mundo para este. Estes fantasmas gostariam mesmo de serem os seus corpos, o seu aqui e agora, eles querem se tornar isso. A primeira sequência após o prólogo em “O Pagamento Final” dá a mais eufórica demonstração disso até essa data: Carlito Brigante na corte descreve sua reformação, seu crescimento pessoal, suas resoluções, agradecendo cada assistente e brincando com a multidão como um ator recebendo um Oscar. Nós assumimos que ele está tirando sarro desse mundo e mesmo assim — e este é um importante evento no cinema de De Palma — nós acabamos entendendo, profundamente, que ele disse a verdade, que ele é verdadeiramente um amante da vida. Desta maneira o cinema agarra uma ‘criatura’ do reino da artificialidade, e a amarra a si próprio.”[4]
O personagem vivido por Craig Wasson em “Dublê De Corpo” é um ator que interpreta um morto, um vampiro, que não se adequa ao seu estado natural, isto é, é claustrofóbico e não consegue ficar no caixão como deveria. Seu isolamento é apenas perturbado quando se apaixona pela mulher que vê da janela de onde se encontra, sendo ele nada mais que um substituto da pessoa que mora ali e que se encontra fora, mais uma vez ele assume outro corpo. Ao invés de estabelecer contato com o mundo real ele apenas invade a privacidade alheia. E ao se frustrar por não impedir a morte do objeto desejado descobre que esse objeto era falso. Na procura do objeto real do desejo ele assume outro corpo, que é a de um suposto produtor de filmes pornográficos. Sua condição física nunca se restabelece e ao final o que vemos é uma volta ao papel do vampiro, agora talvez sem anteriores inadequações de sua condição e matéria, um morto-vivo novamente.
4.3. Autor e autoria
A questão do artista se expressando é posta sutilmente em alguns filmes do cineasta. Servindo como uma espécie de autoanálise para determinados projetos em determinadas épocas.
Se tomarmos o enredo de “Missão Impossível” e o contextualizarmos dentro da carreira de De Palma encontraremos muitas semelhanças na trajetória do agente Ethan Hunt (Tom Cruise), sendo ele quase um alterego do diretor. Hunt perde suas referências ao ter sua equipe morta numa operação secreta e perde também seu líder; terá que recrutar agentes desabilitados para recuperar sua identidade; no final descobrirá um companheiro fiel e vários traidores, entre eles o seu líder supostamente morto e sua paixão mal resolvida. De Palma vindo de sucessivos fracassos e sem ter credibilidade no mundo cinematográfico assume uma grande produção para se reafirmar como diretor, voltando a recrutar antigos companheiros na parte técnica. Várias questões ficaram no ar e foram muito discutidas entre críticos e fãs da obra sobre quem seriam os traidores e seu companheiro fiel (muito provavelmente Eric Schwab, seu protegido e diretor de segunda unidade de vários de seus filmes). Essa teoria foi primeiramente exposta pelo crítico Charles Taylor no sítio virtual Salon:
“Quando De Palma começou fazendo seus filmes alternativos nos anos 60, ele se aliou aos jogadores de bombas (terroristas) e não às crianças das flores. “Missão Impossível” sugere o que se sente alguém que nunca perdeu sua desconfiança nas instituições e no poder estar trabalhando na corporação que é Hollywood. Hunt está na caça do agente duplo que dedurou sua equipe. De Palma é o agente duplo que se infiltrou em Hollywood. Como a série de tv, o filme usa dos artifícios de agentes disfarçados com máscaras de látex que depois eles retirarão para revelar suas verdadeiras identidades. Tom Cruise, o coelho da sorte da bilheteria dos estúdios, é a máscara de látex de De Palma. Quem procuraria por subversão num filme de Tom Cruise?
O chefe de Hunt da CIA, o falso Kittredge (Henry Czerny), sua cabeça esticada como a de uma tartaruga no seu terno azul enquanto oferece a Hunt suas condolências pela perda da equipe, ocupa o lugar de todos os estúpidos executivos de estúdios que De Palma já teve que se relatar. Kittredge é mediocremente triunfante. Ele sabe que a esperteza de Hunt é uma ameaça para a estabilidade que seu poder depende, e ele fará de tudo para manter esse poder, de ameaçar a família do agente com uma falsa acusação de posse de drogas até mandar seus próprios homens para a morte para encobrir um traidor. Pior que ser destruído é ser enganado. Uma olhada no chefe da IMF, o Jim Phelps de Jon Voight (o único personagem trazido da série) diz a você o preço que você paga por brigar com os chefes. Ele é inchado e profissional sem convicção, com uma cara de um homem que já não sabe mais porque está fazendo o seu trabalho. (É uma piada secreta de De Palma quando a atendente oferece a Jim um vídeo e ele responde: “Prefiro o teatro”).
Aqui, espionar é o mesmo que realizar filmes. O mundo é visto em telas em “Missão Impossível”, de laptops, relógios de pulso como os de Dick Tracy que pegam imagens de câmeras escondidas em óculos até vídeos pessoais em assentos de aviões de primeira classe. Alguém sempre está observando outra pessoa, e nós na plateia observamos os observadores. A vida se tornou um filme, e as ferramentas da indústria podem te enganar se você não as dominar primeiro. Os objetos de espionagem de Hunt se transformam em instrumentos de tortura quando eles o forçam a ver e ouvir sua equipe sendo morta.
Isto não é apenas uma reprise do tema favorito de De Palma — o herói desamparado para poder prevenir as mortes das pessoas que ele tanto se importa, tão desamparado quanto a plateia… Será isto o que De Palma sentiu com o fiasco de “A Fogueira Das Vaidades”? Ou ver suas duas obras primas, “Um Tiro Na Noite” e “Pecados Da Guerra” ‘morrerem’ nas bilheterias?
No final do filme, Hunt é pego entre a tentação de jogar tudo fora e o desejo de tentar de novo, sabendo que as chances de ludibriar os chefes mais uma vez podem trazer os riscos de vender seus talentos. A pergunta final para Hunt: “Você gostaria de assistir um filme?” é De Palma perguntando para si mesmo, “Eu gostaria de fazer um filme?”. “Missão Impossível” faz você sentir como ninguém mais sabe como.”[5]
4.4. Real / imaginário
As incertezas da realidade se manifestam em sequências onde a confusão do que é real ou não é o objetivo maior.
A ideia do espetáculo dentro do espetáculo perpassa a obra do cineasta.
A trama que emoldura “Um Tiro Na Noite” é a de uma filmagem à qual falta um grito de horror, grito finalmente conseguido no assassinato “real” de Nancy Allen. Após a aparição de um vampiro em “Dublê De Corpo” descobre-se que se trata de um filme dentro do filme. Em seguida, uma cena californiana de deserto revela-se um cenário carregado por empregados de estúdio. Num jogo potencializado de espelhos, Jake, Sam e Holly são atores. Jake perde o emprego por causa da claustrofobia e Sam lhe arranja um papel em virtude desse problema. O início de “Vestida Para Matar” apresenta Angie Dickinson no banheiro se acariciando diante de um homem que faz a barba na pia. Logo a seguir o mesmo homem está também no banheiro agarrando-a por trás e a sufocando. Tudo é um pesadelo? Vemos logo a seguir ela estática fazendo amor com seu marido. Foi uma fantasia? Uma premonição?
Tanto personagens quanto espectadores correm o risco de perder o fio condutor e não mais saber até que ponto vai a representação. Essa confusão produzida condiz com um dos objetivos do cineasta, que é assustar, pois assim De Palma pode roubar o espectador de sua própria descrença, sabotando-lhe por saturação, o conhecimento prévio sobre cinema que lhe permitiria desmistificar o suspense. Ele mesmo põe, melhor que o público, todos os recursos interpretativos e desmistificadores em cena, impossibilitando o público de utilizá-los.
Fora todas as outras possíveis combinações e exemplos de representação da realidade presente nos filmes há alguns inícios que apresentam de cara essa falsa realidade:
- filmagem em “Dublê De Corpo”;
- filme em “Um Tiro Na Noite”;
- armação em “Missão: Impossível”;
- fantasia sexual em “Vestida Para Matar”;
- chegada e preparação de Peter Fallow para o discurso em “A Fogueira Das Vaidades”;
- o plano inicial do foguete de brinquedo em “Missão Marte”.
O diretor de fotografia, Stephen Burum, parceiro constante de De Palma esclarece mais esse jogo da realidade e ilusão na concepção da luz do filme:
“O filme (“Dublê De Corpo”) lida com a realidade e a irrealidade a todo momento. Vai para trás e para frente entre elas. Você começa com a irrealidade da filmagem do filme de vampiro que é mostrado para você como real. É feito bem colorido e romântico. Então Jake sai do estúdio de filmagem e para de ser romântico porque ele volta ao real. Você fotografa a realidade de um jeito diferente. Não usa cores aconchegantes. Mais azul. Ao invés das janelas estarem perfeitamente balanceadas elas estouram.”[6]
5. Recursos:
Em vista de ressaltar os temas mais comuns em suas obras, De Palma criou um estilo próprio, capaz de ser facilmente reconhecido pelas características técnicas. Em todos esses recursos a intenção é sempre variável a partir do contexto que o filme estabelece.
São elas:
- Tela dividida;
- Longos planos sequência;
- Utilização de estações de metrô ou trem;
- Escadas como cenário;
- Reflexos e espelhos;
- Close-ups;
- Ângulos desorientadores;
- Tomadas do alto, identificadas como ponto de vista de Deus.
Mais do que simples “truques” cinematográficos, esses recursos ressaltam e muitas vezes ajudam a apresentar ao espectador a ideia por trás de uma simples narração de eventos.
6. Primeira fase:
No começo de sua carreira é fácil notar um estilo mais voltado para a sátira social. “Saudações” (Greetings, 1968) e “Hi, Mom!” (Idem, 1970) apresentam enredos satíricos sobre a guerra, o movimento negro, o alistamento militar e os veteranos de guerra. Muitos críticos viram ali uma enorme influência de Jean-Luc Godard, vindo do uso da câmera livre, a improvisação dos atores e os temas sociais e políticos.
“Hi, Mom!” consegue apresentar, ainda no início da carreira do cineasta, elementos que seriam reprisados e aprimorados mais adiante.
Na sua tomada inicial acompanhamos um plano sequência subjetivo que percorre um pequeno corredor e acaba com o protagonista tendo um diálogo com o zelador do prédio. O longo plano sequência é uma das várias características que De Palma tem em sua palheta artística.
Saindo do aspecto puramente técnico, esse plano inicial contém outro ponto importante a ser destacado: o voyeurismo. De Palma permite frequentemente ao espectador acompanhar o olhar do protagonista de forma livre, quando não utiliza a câmera subjetiva ele adota o ponto de vista no mesmo nível dos olhos do personagem, focalizando-os por trás.
Na história do filme um jovem (Robert De Niro) tem a iniciativa de procurar financiamento com um produtor de filmes pornográficos para suas experiências com uma pequena câmera que mostraria o cotidiano das pessoas que vivem no prédio em frente ao seu — ecos de Janela Indiscreta (Rear Window, 1954). De forma voyeuristica se apaixona por uma garota que mora em uma dessas janelas observadas. Tentando ao mesmo tempo conquistá-la e realizar sua obra erótica ele manipula situações e encontros para esse intuito.
Ao mesmo tempo outra história se desenvolve, um grupo de ativistas negros e um branco liberal promovem uma peça alternativa chamada “Be Black, Baby”. Isso é apresentado na forma de documentário exibido por um canal televisivo. Mais tarde as duas histórias se encontrarão quando o jovem cinegrafista se candidatará para o papel de um policial branco na peça.
Ao final, imerso em mais teorias revolucionárias de guerrilha urbana, o jovem sob a inocente fachada de agora um comum corretor de seguros concretiza a ideia de atacar o sistema por dentro, explodindo um prédio.
As teorias revolucionárias que o jovem De Niro lê no livro “A Guerrilha Urbana” no capítulo das atividades paramilitares em áreas urbanas prenunciam as ideias do próprio papel que De Palma desempenhará no futuro dentro da indústria hollywoodiana. São elas: como os movimentos revolucionários já foram infiltrados por agentes do governo, atos de sabotagem serão realizadas por indivíduos solitários. O sabotador solitário precisa se infiltrar na comunidade e assumir uma vida igual à dos burgueses em torno dele.
Está claro aí também a obsessão de De Palma pelas conspirações e o assassinato de Kennedy, fator marcante de sua vida e já discutida em “Saudações”.
7. Segunda fase:
A partir de “Irmãs Diabólicas” o interesse se volta para o suspense, transformando simples histórias em complicadas tramas que juntam identidades similares, trocadas e manipuladas.
“Vestida Para Matar” de 1980 vem falar de duas histórias que se completarão: uma mulher insatisfeita com a vida e com a sua sexualidade e o alterego do psicanalista de Michael Caine, o travesti Bobby.
Levada por seus instintos a personagem de Angie Dickinson encontra num solitário galanteador no museu a chance de fugir de sua rotina tediosa.
Sua fantasia é finalmente realizada, mas é na realidade uma armadilha. Sua frustração sexual tem tanta força mental que, na verdade, influencia forças abstratas que montam um cenário como isca. Ela cederá a tentação? É um teste assustador. Quando ela cede aos impulsos do misterioso homem é como Adão comesse a maçã. O destino começa um jogo diabólico e doloroso com ela. Primeiro transforma seu amante-de-uma-tarde em temor de uma doença venérea, então se expressa na garotinha que a encara no elevador — como um símbolo de inocência perguntando: você está com a consciência limpa? Então Bobby que aparece repentinamente da vigilância abstrata para a realidade. A punição aparece na forma de uma assassina loira.
Em Um Tiro Na Noite (Blow Up, 1981) o personagem principal (John Travolta) tem o destino traçado, a tragédia o marca, vindo de uma operação com a polícia que causa a morte de um dos policiais. E termina com a morte de outra pessoa que se envolve com ele.
O filme dentro do filme contêm elementos ao mesmo tempo auto irônicos e significativos para o desenvolver da trama. Demonstra uma grande percepção das opiniões e críticas sobre a própria obra ao mostrar um pequeno enredo de filmes de baixa categoria de um psicopata deformado voyeur que ao final atacará uma mulher no chuveiro.
Ao compararmos a trajetória desse psicopata com o personagem vivido por John Travolta no enredo principal perceberemos muitas semelhanças. Como o sonoplasta, o psicopata mata um policial e mata uma mulher que tem o grito errado, só que no filme ele causa a morte de um policial disfarçado no passado e indiretamente provoca a morte da garota com o grito certo.
Analisando mais a questão do duplo no filme é perceptível a duplicidade e espelhamento no protagonista do filme dentro do filme com o do filme “real”. Logo após há a transferência desse psicopata por outro vivido por John Lithgow, Burke.
Burke é o alterego de Jack, suprindo o lado misógino e a sexualidade reprimida. Como no final onde Nancy Allen é literalmente sufocada por fios, fios estes que são também os da escuta colocada por Travolta.
As semelhanças com a obra hitchcockiana ficam apenas na superfície quando encontramos elementos diferenciadores nos dois cineastas. O voyeur de Hitchcock como James Stewart em “Janela Indiscreta” é apenas um observador do crime enquanto os vários personagens de De Palma são testemunhas do mesmo. O ator desempregado que vê e tenta impedir que a bela mulher que ele observava seja morta (“Dublê De Corpo”); a prostituta que vê a personagem de Angie Dickinson morrer dentro do elevador (“Vestida Para Matar”); o sonoplasta que chega momentos depois do estrangulador ter matado a última vítima (“Um Tiro Na Noite”); o soldado que vê o fuzilamento da vietnamita pelos outros soldados na ponte (“Pecados Da Guerra”); são exemplos que demonstram isso.
8. Terceira fase (Missão Impossível):
Mesmo quando De Palma assume o comando de produções claramente comerciais ele consegue agregar seus recorrentes temas. Isso ocorreu mais explicitamente nos bem sucedidos projetos “Os Intocáveis” e “Missão Impossível”.
Vejamos o exemplo no filme “Missão Impossível” (Mission: Impossible, 1996):
- Toda parte visual referente a planos e enquadramentos são característicos. O ponto de vista de Deus; as câmeras subjetivas; os travellings contínuos; e as composições no quadro em duplas ou trios;
- A sequência inicial constitui de uma farsa montada com o intuito dos agentes conseguirem informações sigilosas. Há, novamente aqui, a representação da realidade, o real como falso e ilusório; o uso da máscara do agente Ethan Hunt (Tom Cruise) que além de ser um disfarce é um refúgio da realidade externa já vistos em “O Fantasma Do Paraíso”, “Vestida Para Matar”, “Dublê De Corpo” e “Sindrome De Caim”; o aspecto voyeurístico da vigilância visto por um monitor de tv; a suspensão do tempo e do estado entre a vida e a morte que a personagem interpretada pela atriz Emmanuelle Beart se encontra, uma vez mais, a condição de não-morte;
- Essa condição de não-morte está presente durante todo o filme e é parte essencial do roteiro que acompanha o “fantasma” de Ethan Hunt, um agente agora transformado em apenas um indivíduo comum que se encontra sem identidade e privado de sua realidade em busca do conhecimento (os arquivos contendo a lista dos agentes disfarçados na Europa). Há aí uma trama intrigante onde a revelação de agentes, isto é, o descobrimento de identidades trará de volta a própria identidade perdida do protagonista. O outro “fantasma” se revela: o antigo chefe do protagonista que mantinha uma relação paternal com o mesmo. Ele, dado como morto, ressurge e apenas vem a confirmar ser um agente duplo que encenou sua própria morte. Ilusões, duplos, fantasmas (não-mortos) e perdas de identidades são típicos do cinema de De Palma;
- Os duplos: num mesmo plano dispostos no mesmo cenário encontramos lado a lado a mente e o corpo nos atores Ving Rhames (mente) e Jean Reno (corpo) espelhados nos atores Cruise (mente) e Emmanuelle Beart (corpo). Uma sutil mudança de expectativas se dá na escolha dos atores para os personagens de Rhames e Reno que estão ali mais como presença fílmica do que como atores, subvertendo suas imagens cinematográficas anteriormente expostas para o público. O calculista matador de Reno em “O Profissional” e o truculento chefão de Rhames em “Pulp Fiction”;
- A sequência chave do filme, o roubo dos arquivos da base central da CIA em Langley é um primor de técnica e utilização de símbolos e temas. Ethan Hunt tem que se transformar literalmente num fantasma para não ativar nenhum alarme no sistema de segurança do cofre, para isso neutralizará suas características corporais como a temperatura, o movimento e o som. Num cenário branco e asséptico com linhas que dão a idéia de uma grande teia o protagonista vira uma aranha, teia essa com referências a um momento anterior do filme com a procura de informações pela internet (a world wide web). O objetivo é a posse do conhecimento final, razão de todo filme. Se o corpo é que tem que passar a uma não-existência para o êxito da missão é ele próprio o traidor dessa condição. A presença de um rato, a súbita falha de Krieger (Reno), o suor de Hunt e finalmente a faca que caí são todos objetos físicos que se rebelam a ficar nesse estado inexistente. Sendo a faca fincada ao lado do teclado a prova final da corporalidade da missão;
- O relacionamento dos personagens de Cruise e Beart é mostrado de forma ambígua, nunca explicitando se houve um envolvimento romântico ou não;
- Na sequência que Hunt reencontra seu chefe, Jim Phelps (Jon Voight) há um uso muito interessante do flashback. Enquanto Phelps acusa outra pessoa de ser o agente duplo Hunt repassa as situações ocorridas no início do filme colocando o próprio Phelps como o agente duplo. Estabelecesse uma divisão no diálogo entre os dois e a mente de Hunt. Não é necessariamente um flashback, mas uma construção visual do que pode ter ocorrido pelo olhar de Hunt. Ao lado do diálogo na direção oposta a sequência adquire um aspecto intrigante e confuso para o espectador médio, expectativa essa comprovada durante sua carreira comercial nos cinemas.
Não foi apenas nesse filme que De Palma exercitou seus temas pessoais, mas é onde mais houve utilização de símbolos e assuntos desde “O Fantasma Do Paraíso”.
9. Trajetória:
Um dos pontos que seriam essenciais para avaliar a trajetória de De Palma até agora seria sua coerência e se ele, como muitos outros, caiu no fosso de realizações que apenas remetem — na questão formal, estética e autoral — aos trabalhos já realizados. Se De Palma apenas faz de seus recentes filmes uma variação do que já fez.
Esse questionamento é bem expresso numa passagem que o cineasta Ingmar Bergman escreveu: “Um crítico francês disse, com acuidade, que ‘com Sonata De Outono Bergman fez um filme à Bergman’. Isso é uma verdade que me aborrece. Só a mim, claro. Minha opinião é que esse crítico tem razão. Bergman fez sim, um filme à Bergman, mas se tivesse tido forças para realizar minha idéia inicial, não teria sido assim. Eu admiro e gosto muito de Tarkovski. Acho que é um dos maiores realizadores do cinema. Minha admiração por Fellini não tem limites. Por outro lado, parece-me que Tarkovski acabou fazendo filmes à Tarkovski e que Fellini, nos últimos tempos, fez também um ou outro filme à Fellini. Kurosawa, esse não fez nenhum filme à Kurosawa. De Buñuel jamais gostei. Ele descobriu cedo como fazer uns quantos truques, os quais foram logo elevados a uma genialidade buñuelesca muito especial, e depois repetidos com variações. E foram sempre sucessos. Buñuel fez quase só filmes à Buñuel. É portanto, tempo de me olhar no espelho e perguntar: Como é que é? Bergman só fez filmes à Bergman?”.[7]
Olhando sua produção desde os anos 90 encontramos um cineasta que arriscou a participar de projetos diferentes como “A Fogueira Das Vaidades”, “Missão Impossível” e “Missão Marte”. Projetos que poderiam ser realizados por outros diretores e não tem a marca “De Palma” em letras grandes para fácil reconhecimento. Mesmo que ao nos aprofundarmos em cada trabalho descobriremos muitas coisas semelhantes de sua herança cinematográfica que faz desses filmes verdadeiros filmes de Brian De Palma, veremos que ele aponta para novas direções, ainda não se enquadrando e deixando se levar pela comodidade da autorreferência infinita e nem pelo apelo fácil da perda de identidade própria dentro de um sistema industrial e comercial.
E tendo como exemplo seu mais recente projeto, de acordo com a feitura desse estudo, “Missão Marte”, observamos claramente uma mudança. Seja explorando um gênero ainda não experimentado, a ficção científica; seja deixando perceber um otimismo incomum no seu passado; ou utilizando em maior escala o uso de efeitos especiais, o que se vê é um bom sinalizador para uma renovação artística dentro do que pode ser chamado de seu alcance cinematográfico como artista e como diretor.
10. Conclusão:
Explicitando sua biografia, seus filmes e temas; ajudando a colocar numa perspectiva histórica toda sua carreira o trabalho vem a chegar ao seu término.
As relações intercambiáveis entre os temas foram expostas.
Nota-se coerência na condução de projetos aparentemente distintos, mas interiormente bem conectados entre si.
Por tudo isso é fato que podemos apontar Brian De Palma como um autor cinematográfico e um exemplo da possibilidade, mesmo que árdua e por vezes limitada, da expressão pessoal através do cinema num cenário industrial onde as finanças tendem a ser os pilares principais.
Sabendo da própria dualidade que De Palma sempre encarou seu papel na indústria não fica aqui uma resposta simples ou um caminho seguro para novas gerações dentro da produção em massa que o cinema americano, particularmente, impõe aos seus realizadores.
Mas, o mais importante talvez, é saber da existência de certos cineastas como De Palma. E sua obra, cedo ou tarde, figurará com muito mais destaque nos estudos cinematográficos e na história do cinema.
Apêndice
Filmografia de Brian De Palma:
1963: Festa De Casamento (The Wedding Party).
1966: The Responsive Eye.
1967: Murder À La Mod.
1968: Saudações / Quem Anda Cantando Nossas Mulheres? (Greetings).
1969: Dionysus In 69.
1970: Hi, Mom! (Idem).
1972: O Homem De Duas Vidas (Get To Know Your Rabbit).
1973: Irmãs Diabólicas (Sisters).
1974: O Fantasma Do Paraíso (Phantom Of The Paradise).
1976: Trágica Obsessão (Obsession).
1976: Carrie — A Estranha (Carrie).
1978: A Fúria (The Fury).
1979: Terapia De Doidos (Home Movies).
1980: Vestida Para Matar (Dressed To Kill).
1981: Um Tiro Na Noite (Blow Out).
1983: Scarface (Idem).
1984: Dublê De Corpo (Body Double).
1986: Quem Tudo Quer… Tudo Perde (Wise Guys).
1987: Os Intocáveis (The Untouchables).
1989: Pecados Da Guerra (Casualties Of War).
1990: A Fogueira Das Vaidades (The Bonfire Of The Vanities).
1992: Síndrome De Caim (Raising Cain).
1993: O Pagamento Final (Carlito’s Way).
1996: Missão Impossível (Mission: Impossible).
1998: Olhos De Serpente (Snake Eyes).
2000: Missão Marte (Mission To Mars).
2002: Femme Fatale (Idem).
2006: Dália Negra (The Black Dahlia).
2007: Guerra Sem Cortes (Redacted).
2012: Paixão (Passion).
Bibliografia
Livros
BERGMAN, Ingmar. Imagens. São Paulo. Martin Fontes, 1996.
DWORKIN, Susan. Double De Palma. New York. Newmarket Press, 1984.
SALAMON, Julie. The Devil’s Candy — The Bonfire Of The Vanities Goes To Hollywood. Boston. Houghton Mifflin Company, 1991.
Textos
ASCHER, Nelson. Sexo & Sangue. Caderno Folhetim do jornal Folha De São Paulo, 21 De Novembro de 1986.
COTA, Ricardo. Brian De Palma — Entre O Amor E O Ódio, O Cineasta Segue Filmando. Revista Cinemin, Junho de 1986.
EDUARDO, Cléber. Sob O Domínio Da Imagem. Revista Época, 21 De Setembro de 1998.
KEOUGH, Peter. Out Of The Ashes. Revista Sight And Sound, Agosto de 1998.
PUCCIO, Giuseppe. Stealing Knowledge, The Double and Undead. No site Brian De Palma’s Slipt World. http://members.xoom.com/gpu/depalmae.htm em Maio 2000.
PONTUAL, Jorge. Sem Bússola Moral. Revista Época, 21 De Setembro de 1998.
Sítios virtuais
Brian De Palma And The Cinema Of Cynicism
(http://www-personal.umich.edu/~eharrisz/depalma.html)
De Palma A La Mod (http://www.angelfire.com/de/palma/index.html)
Directed by Brian De Palma (http://www.briandepalma.net/)
Le Paradis de Brian De Palma — Version 2.0 (http://www.colba.net/~jecr/)
[1] Entrevista dada ao jornalista Bill Fentum para o site Directed By Brian De Palma (http://members.xoom.com/gpu/depalmae.htm) em Março de 2000.
[2] SALAMON, Julie. The Devil’s Candy, p.27
[3] PUCCIO, Giuseppe. Brian De Palma’s Split World no site (http://members.xoom.com/gpu/depalmae.htm)
4 BRENEZ, Nicole. Retirado do site Senses Of Cinema (http://www.sensesofcinema.com/)
5 TAYLOR, Charles. The Filmmaker Who Came In From The Cold retirado do site Salon (http://www.salon.com)
6 DWORKIN, Susan. Double De Palma, p.129
[7] BERGMAN, Ingmar. Imagens, pg. 330–332
Orientador: Prof. José Alberto Nobre Porto.